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Vamos falar sobre solidão materna?

“Exercer a maternidade é dançar uma estranha dança da solidão. Como é possível sentir tão só em um momento da vida que é quase literalmente todo preenchido pela presença dos filhos?” A fala de Cila Santos, mãe, escritora e ativista, ilustra bem os desafios e as contradições da maternidade. No imaginário social, a experiência de ser mãe não é nunca solitária - afinal, as mulheres estão sempre acompanhadas de seus filhos. Entretanto, muito pouco se fala sobre os diversos desafios que a maternidade traz para a vida profissional, social, afetiva e emocional das mulheres, responsáveis por despertar um sentimento de solidão diante da experiência de ser mãe.


É diante dessa realidade que as psicólogas Luisa Ruzzarin Pesce e Rita de Cássia Sobreira Lopes, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, elaboraram um estudo com o tema “Lado B da maternidade”, a partir da análise de relatos pessoas de mães sobre a experiência da maternidade, extraídos de mais de 100 blogs dedicados ao tema. Uma questão crucial identificada pelas autoras é a representação midiática da imagem da “mãe perfeita”, em que a maternidade é sempre uma vivência repleta de alegria, realização e completude. Certamente, esta pode ser a vivência de diversas mulheres; entretanto, é perfeitamente comum e esperado que sentimentos negativos estejam também associados a essa experiência, assim como ocorre em todas as outras áreas da nossa vida. Muitas mulheres relatam se sentirem cansadas, sozinhas e isoladas no mundo exterior; porém, sentem dificuldades em compartilhar essas emoções sem se sentirem culpadas por não atenderem a esse ideal socialmente propagado de “mãe perfeita e feliz''.



Além disso, diversas mulheres em um relacionamento estável com o pai biológico da criança relatam sentir também os efeitos da maternidade na relação conjugal. Isso ocorre, principalmente, pela construção social de que o trabalho de cuidado é sempre associado ao feminino e às mulheres. Assim, os cuidados com a criança são majoritariamente feitos pela mãe, que dedica toda sua energia e atenção a essa tarefa, enquanto seus parceiros se dispõe meramente a “auxiliar” no trabalho de cuidado. Para Rosa (2009), o papel assumido pelo pai após o nascimento dos filhos tende a ser o de “mãe substituta” - ou seja, um papel passivo de criador, ocupado apenas quando a mãe não está presente para desempenhar tal função. Essa dinâmica influencia não apenas no desenvolvimento infantil da criança, que passa a identificar a mãe como “criador principal”, mas também na relação conjugal, dado que essa relação abre espaço para sentimentos de angústia, ressentimento e afastamento. Além disso, contribui imensamente para que as mulheres se sintam ainda mais sozinhas nessa jornada, sem o apoio integral até mesmo de seus companheiros.


Os sentimentos de vulnerabilidade e solidão vivenciados pelas mães se manifestam ainda no isolamento em relação à vida social, dificuldade relatada principalmente pelas mulheres no puerpério. Aqui, é essencial que o núcleo familiar como conhecemos hoje na sociedade moderna e ocidental, é totalmente diferente da forma como as famílias se organizavam em uma sociedade pré-capitalista. Em sua obra Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado (2019), Engels ressalta a importância do grupo e da vida social para as famílias primitivas, em que o núcleo familiar era constituído por toda a tribo. Assim, as relações se davam de maneira generalizada, e o cuidado das crianças era partilhado por todos os membros do grupo. O autor relata ainda a forma como a família individual que conhecemos hoje se desenvolveu, de forma que seus membros constituem um grupo único, segregado da sociedade. Isso impacta, certamente, toda a organização social mas, principalmente, a vida familiar das mulheres. As tarefas do lar, antes partilhadas, recaem agora unicamente sobre elas que se veem sobrecarregadas diante desse papel. Nesse sentido, as mães cujos relatos foram analisados relatam se sentirem afastadas de seus cônjuges, mas também da vida social e familiar que partilhavam antes em suas relações interpessoais. Além disso, o fato de os cuidados da criança serem de total responsabilidade da mãe traz ainda outros impactos para essas mulheres, como extrema ansiedade, medo de falhar e o peso da responsabilidade. O relato a seguir, de Amorim (2013), ilustra essa situação:


“Esse foi o exato momento em que eu caí na real. O exato momento em que percebi que agora eu tinha uma pessoa que dependia de mim para absolutamente tudo e que eu teria que continuar exercendo minhas outras funções de mulher, esposa, profissional e ao mesmo tempo, e acima de tudo, as de mãe. Ali percebi a condição definitiva em que eu me encontrava. E senti um peso enorme em cima dos meus ombros…”



Os relatos dessas mulheres são um passo essencial para se quebrar a imagem social de que mães devem atender sempre aos ideais impostos para a maternidade. Mães, assim como qualquer outro grupo social, sentem medos, angústias, tristezas e, principalmente, solidão. Isso não quer dizer que essas mulheres estão desconectadas de seus filhos ou infelizes com suas escolhas, mas sim que reconhecem seus sentimentos e enxergam o direito de expressar suas verdadeiras emoções. Tanto para as psicólogas quanto para as mães ouvidas na pesquisa, o fator que mais auxilia a minimizar os efeitos negativos da maternidade é se expressar, compartilhando esses sentimentos e buscando apoio. Muitas mulheres relatam, especificamente, a importância de grupos de apoio e discussão sobre maternidade, onde outras mães contam também suas experiências e trocam impressões sobre o que realmente significa ser mãe. Porém, mais importante do que expressar a solidão, é renunciar à ideia de que a maternidade deve ser sempre solitária e isolada. Nas palavras de Cila Santos: “Maternidade não é somente sobre amor. É sobre cuidado. E cuidar de outro ser de maneira tão intensa é exaustivo. Não é possível de ser feito sozinho.”


Julia Morato

Ciências Econômicas - UFMG

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Amorim, M. Sobre a depressão pós-parto e o impacto do início da maternidade nas nossas vidas. Vida Materna. 2013, Janeiro 23. Disponível em: http://www.vidamaterna.com/sobre-a-depressao-pos-parto-e-o-impacto-do-inicio-da-maternidade-nas-nossas-vidas/. Acesso em 13/05/2022.


Engels, F. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. Boitempo Editorial. 2019.


Pesce, L. R.; Lopes, R. C. S. "O Lado B da Maternidade": Um Estudo Qualitativo a partir de Blogs. Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro , 20(1), 205-230. 2020 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1808-42812020000100011&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 13/05/2022.


Rosa, C. D. O papel do pai no processo de amadurecimento em Winnicott. Natureza humana, 11(2), 55-96. 2009. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-24302009000200003&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em 13/05/2022.


Santos, C. A maternidade e a dança da solidão. Militância Materna. 2017, Maio 25. Disponível em: https://militanciamaterna.com.br/dan%C3%A7o-eu-dan%C3%A7a-voc%C3%AA-na-dan%C3%A7a-da-solid%C3%A3o-ae5a4fbeeeb3/. Acesso em 13/05/2022.


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